A vida de uma menina-mulher-senhora
Era 1979,
logo após a anistia. A menina, com seus 20 anos, estava cansada daquilo tudo,
daquela cidade de pedra. Junto da sua amiga, resolveram partir para viver uma
vida livre e cheia de sonhos. Foram para o sul do país, num estado cheio de
praias e natureza.
Lá
trabalharam de tudo um pouco. Comércio, serviços gerais, indústria. O que desse
algum dinheiro e tempo para viver era suficiente. A menina estudava bastante,
principalmente a natureza. Estudava, lia, cantava e vivia livre, sem ter que se
preocupar com todo o caos social em que o país vivia, em meio a uma ditadura
irresponsável.
Nesse meio
tempo, conheceu um homem trabalhando em uma editora. Ele era mais velho, maduro
e estruturado. Vinha toda segunda de sua cidade natal e sexta ao final do dia
para lá retornava. Ele também sonhava e queria viver de forma livre o mundo e a
natureza. Era um par perfeito, se amavam e se completavam. A menina estava
plena: tinha um par romântico perfeito, uma amiga inseparável, estava no local
que sempre sonhou viver… o que esperar mais da vida?
Foram meses
de muita alegria e completude. Conheceram toda região, frequentaram shows, liam
e cantavam juntos. Era um sonho. Mas o sonho tinha prazo de validade e ele
expirou quando a menina soube que ele era casado. A decepção juvenil não
permitiu que as possibilidades fossem pensadas e a coragem necessária tivesse
espaço. O rompimento dramático, bem típico daquela juventude veio e ela decidiu
voltar a sua cidade de pedra com sua amiga fiel. Abandonaram o sonho para viver
a realidade dura.
Logo conheceu
um garoto e, para esquecer do homem que a machucou, decidiu seguir com ele a
vida morna. Logo se casaram para provar que eram capazes, logo vieram os filhos
para provar que são capazes, logo vieram as responsabilidades e dificuldades
que provaram sua capacidade de deixar de ser menina e passar a ser mulher. E
sendo mulher, não arredou pé de arcar com as agruras e usufruir das poucas
alegrias que vinham.
Mas o garoto
não virou homem e logo vieram as traições, a violência psicológica, os abusos.
Ela, mulher firme, aguentou tudo pelos filhos. Não era totalmente infeliz. Além
dos filhos, tinha uma família maravilhosa e sempre que podia (e que o garoto
não estava por perto), vivia essas alegrias plenamente, nunca sem esquecer do
que poderia ter sido se aquela decisão precipitada de abandonar o paraíso no
Sul e seu amor proibido tivesse dado certo.
Em meio a
tudo isso, fez uma promessa a si mesma: assim que os filhos saíssem de casa,
largaria tudo e faria como aos 20 anos. Partiria para o paraíso que conhecera e
retomaria a vida de onde parou, de preferência, encontrando aquele amor pelo e
impossível. A pergunta que não calava: será que consigo?
A filha se
casou, o filho casou e lhe deu uma neta. Era hora de criar coragem e, mais uma
vez, correr ao encontro da felicidade. Pela internet iniciou uma busca por
aquele homem de outrora. Agarrou sua amiga inseparável e, escondido daquele
garoto (que, apesar das rugas, mantinha a postura infantil e insegura de um
menino), iniciou sua vida novamente.
Enfim,
encontrou o homem do passado, que agora era um senhor. Juntou coragem e entrou
em contato com ele. Surpresos, reviveram ao telefone os sonhos de outrora.
Juntos, planejaram esse reencontro e a mudança daquela senhora-menina para o
lugar em que a história avia abruptamente parado. Ela pediu divórcio, juntou as
poucas coisas e partiu. Ele não poderia fazer o mesmo. Cuidava de uma esposa
doente. Mas isso não seria impeditivo para viverem novamente uma história
impossível.
Ela foi viver
dos mesmos trabalhos que lhe dessem o sustento e o tempo necessário para ser
feliz. Trabalhava com a natureza que havia estudado e voltou a ler e ouvir tudo
que o garoto não permitia. E agora, nos poucos momentos possíveis, ao lado de
seu grande amor. Mas também, a vida não seria um morango. Ela adoeceria e,
pouco mais de três anos após sua libertação, viria a falecer devido a
complicações de uma doença que surgira nos anos de estresse e infelicidade
viveu na selva de pedras.
Poderia
encerrar aqui a história de forma pessimista, já que todo leitor que se prese,
espera um final feliz. O Senhor ficou triste com a partida da menina, os filhos
dela também. Sua amiga inseparável também ficou inconsolável. Eu mesmo que
escrevo essas linhas, no pouco tempo que a conheci, fiquei indignado com a vida
ao saber de sua passagem.
Mas paremos
para refletir: seria uma vida digna se ela tivesse fincado ao lado da moral e
bons costumes, mantido um casamento infeliz, sofrente ao lado daquele que não
ama até a morte? Ou seria feliz uma vida pela metade, sustentando uma relação
paralela desde a juventude com o homem que amava, mas que já tinha esposa e
filhos?
Nunca saberemos.
O que sabemos mesmo é que a maturidade trouxe a coragem necessária para que a
vida possível fosse vivida e a sabedoria necessária para conviver com as
incompletudes e impossibilidades. E tudo que foi possível viver em cada momento
foi vivido de forma plena, porque a postura que aquela menina, que virou mulher
e que se tornou uma sabia senhora nunca deixou de acreditar que a felicidade
era possível, que os relacionamentos não são coisa perfeitas e imaculadas como
nos romances “hollyudeanos”, e que a moral, a expectativa alheia ou mesmo as
inseguranças e medos de dentro não são capazes de barrar uma alma livre, cheia
de vontade de viver um amor possível, porém verdadeiro.
Esse conto é
uma homenagem a uma vida que viveu e amou da forma que, não o que eu desejava
escrever e nem o que desejávamos ler. Se você se identifica com a menina, com o
homem, com o garoto, com a amiga inseparável, com os filhos da mulher ou mesmo
com esse que vos escreve, se pergunte: que coragem me falta para viver a vida e
o amor que mereço, mesmo com suas imperfeições? O que me falta fazer para ser
feliz? O que preciso ser, independente da expectativa de quem lê minha vida de
fora? O que me falta para ser livre?
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