Chevette 77

Pois é. Mais um dia começa. Tomei meus remédios pra segurar aquela dor que nenhum médico descobre. Tomo banho, tomo café, como um rola na escada da garagem mas sem vacilo. Levanto e pego o Chevetão pra ir trampar. Tenho até um emprego legal. Não ganho bem, mas ganharia pra comprar um carrinho melhor. Como não gosto de fazer dívidas, comprei um chevette mesmo. Os bancos já me roubaram muito dinheiro na vida. Carrinho bom. Se cuidar, não dá problema. 

Ainda mais que, com ele, não pago IPVA. No meio do percurso para o trabalho, acabei fechando sem querer um Mercedes. Até que o cara foi simpático e aceitou meu pedido de desculpas. "Como é bom ser legal, honesto.", pensei. Mas tudo bem. Achei uma vaga fácil perto da Faria lima. Bem melhor do que pagar estacionamento mensal. Um real por dia pro tiozinho e sai bem mais barato! Afinal, quem vai querer um Chevette? Chegando ao trabalho começa o inferno. Uma amiga do departamento de marketing foi mandada embora... 

Caramba, que paradoxo, uma funcionária exemplar perde o emprego, tendo uma chefe super incompetente. Isso é senso comum sim, não é minha opinião, ou simplesmente comentário da "rádio peão". Quem levava o departamento nas costas era ela, demitida, em conjunto com seus colegas, claro. A chefe dela, só prestava pra colocar seu nome embaixo dos relatórios de sua equipe antes de entregar à presidência. 

Como dizem, o ótimo é inimigo do bom. Papagaio come milho, periquito leva a fama... E mais meia dúzia de ditados. Concluo que preciso me dedicar menos, senão... Um dia estafante de trabalho. Estamos em época de picos de venda, então o departamento de comunicação fica atordoado com as campanhas. Tudo bem até aqui. Chegam, enfim, às 18 horas. Hora de colocar o CD do Jamelão no Chevette e voltar pra casa. Nada como um bom som pra terminar a labuta. Lá pela faixa cinco, eis que tento uma conversão que, claro, era proibida, mas que no momento não causaria nenhum problema a ninguém. Penso que as leis são para isso: evitar atritos entre os membros de uma sociedade, a fim de organizá-la harmonicamente. Não correndo risco de comprometer ninguém, posso infringir a lei? Correto? Acho que não.

Estava na segunda pista, olhei pelo retrovisor e vi que ninguém viria pela pista da esquerda, dei a seta e entrei. Quando vejo, um carro com o farol baixo acesso, freia frenteticamente na minha traseira, me acertando de leve o parachoques. Paro pra ver e tomo um susto. Era uma viatura da polícia civil. 

Em primeiro instante pensei: será que eles estavam em alta velocidade atendendo a um chamado e eu os atrapalhei? Claro que não. Cirene e giroflex apagados? Não é procedimento padrão sinalizar, principalmente em um cruzamento? Pois bem. Estou em meu "estado de direito". 

O cara entrou na pista para me zuar mesmo. A avaria é pequena e estou disposto a dispensá-los de qualquer ocorrência. Que paradoxo seria eu prestar queixa na delegacia contra um policial, não? Mas o guarda insiste em minha conversão proibida e ameaça uma multa. Me diz o valor da multa, diz que o café da manhã dele custa cerca de metade desse valor... Me senti em um pleno assalto com ares cênicos (e cínicos.). 

Que paradoxo (o terceiro do dia)! Um policial me assaltando. E ainda usando a lei como álibi! Coisa de louco. Mas vá lá. Já estou cagado, o que é uma flatulência. Eis que quando me acerto com o policial e saio, diante do nervoso que passei me descuido e fecho um motoqueiro. Este, ainda considera meu pedido de desculpas. Porém, os que se seguiam não. Antes mesmo que repetisse o pensamento da manhã - sobre as vantagens de ser honesto - uma bota atinge meu retrovisor direito e outra amassa meu paralama. Ai meu Chevette... 

Agora é parachoque, paralama e retrovisor! Eu que ainda pensava em retocar a pintura pra tentar vender o carro em alguma revista de carros antigos... mas enfim. Termina meu dia. Uma noite de sono e tudo passa. Mas me atormenta a cabeça o fato de ser o único brasileiro que não pode infringir a lei. Não ganho bem, não tenho tudo que quero, nem ainda o mínimo que preciso. Nem saúde, nem educação, nem segurança (desse jeito também nem quero, pô.). E ainda, legalmente ou ilegalmente me tomam o pouco que me resta... hahaha... 

Ainda bem que sou sarcástico a ponto de rir disso. Quem me dera ser como um médico legista. Enterrando meus erros. Mas, que erros? As pequenas falhas que cometo? Foda-se! Olha a discrepância que passei e vejam de que lado a justiça deveria se posicionar! Mas os dias que se seguiram me inspiraram a continuar minha vida otimista, sorridente e honesta, na medida do possivel, claro! Eis que duas semanas se seguem e chega a multa. Aquela que paguei ao policial para não receber... Imagine só?

O que cometi foi uma conversão proibida e aqui está escrito que passei o farol vermelho atingindo uma viatura de polícia que atendia a um chamado. Cadê a justiça que desejava há quinze dias? Ela é dos fortes, apenas. Pronto, filhos da puta, conseguiram o que queriam. Tomaram minha carta, meu Chevette 77, minha hombridade e meu otimismo. Vai meu 13º para bancar tudo isso. Só espero que não me coloquem no xilindró, nem advogado eu tenho! 

Moral da história: O bom é inimigo do ótimo, a lei serve para os mais fortes, o bom médico legista enterra seus erros com a lei do mais forte porque não é ótimo e eu preciso de muito sal grosso... Ainda bem que é só um conto. Ou não?

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